domingo, 6 de novembro de 2016


"era uma visão, aquela, sim, 'dolorosamente impressionante', e Ultimo descobriu ali, pela primeira vez, como pode ser dilacerante o desejo, quando quem o oferece é o corpo de uma mulher. Ficou como que assustado. E talvez tenha sido por isso que, revendo devagar para frente e para trás com seu olhar aquele perfil sem trincas, começou, por assim dizer, a despi-lo do que tinha de feminino e a levá-lo em direção a uma beleza mais secreta, em que a pele se tornava uma simples linha, e o corpo, um desenho gravado em relevo na claridade da tela. Era algo que o tranquilizava, porque aquela beleza ele conhecia. Esqueceu-se da mulher e se concedeu outra perfeição, reparando a linha pura e o desenho até que se tornaram trajetória e traçado - e estrada.
[...]
Ultimo pôs o motor no máximo e dobrou-se sobre a moto, porque tinha alguma coisa pra lhe dizer e queria que ouvisse direito. Disse-lhe que tinha de chegar antes da morte, e conseguiria certamente, bastava que ela se comportasse bem. Disse-lhe para observar como a estrada decidira ajudá-los e se pusera toda retinha, para que pudessem chegar antes. E explicou-lhe que a beleza de uma linha reta é inalcançável, porque nela se desmanchou toda curva e insídia, em nome de uma ordem clemente e justa. É uma coisa que as estradas podem fazer, disse-lhe, e que, ao contrário, não existe na vida. Porque não corre reto o coração dos homens e não há ordem, talvez, em seu andamento". 

*

"A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda distância."


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