terça-feira, 8 de novembro de 2016


Despretensioso, isso que é desde o princípio; isso e você: talvez o grande trunfo - que eu reconheça. E com a leveza que isso te confere à mão (garantindo,  ao movimento, um destino como que incerto ao observador), afastou minha bagunça - basicamente livros xícaras fios angústias reminiscência - e pousou no papel a ponta do pincel passado sem peso na aquarela. Feito mancha, me insurjo forma. 

Me afano retrato e me me dou de presente roubado. Eventualmente, te me devolvo.
Por hora, desculpa... mas tava com saudade de mim.


domingo, 6 de novembro de 2016


"era uma visão, aquela, sim, 'dolorosamente impressionante', e Ultimo descobriu ali, pela primeira vez, como pode ser dilacerante o desejo, quando quem o oferece é o corpo de uma mulher. Ficou como que assustado. E talvez tenha sido por isso que, revendo devagar para frente e para trás com seu olhar aquele perfil sem trincas, começou, por assim dizer, a despi-lo do que tinha de feminino e a levá-lo em direção a uma beleza mais secreta, em que a pele se tornava uma simples linha, e o corpo, um desenho gravado em relevo na claridade da tela. Era algo que o tranquilizava, porque aquela beleza ele conhecia. Esqueceu-se da mulher e se concedeu outra perfeição, reparando a linha pura e o desenho até que se tornaram trajetória e traçado - e estrada.
[...]
Ultimo pôs o motor no máximo e dobrou-se sobre a moto, porque tinha alguma coisa pra lhe dizer e queria que ouvisse direito. Disse-lhe que tinha de chegar antes da morte, e conseguiria certamente, bastava que ela se comportasse bem. Disse-lhe para observar como a estrada decidira ajudá-los e se pusera toda retinha, para que pudessem chegar antes. E explicou-lhe que a beleza de uma linha reta é inalcançável, porque nela se desmanchou toda curva e insídia, em nome de uma ordem clemente e justa. É uma coisa que as estradas podem fazer, disse-lhe, e que, ao contrário, não existe na vida. Porque não corre reto o coração dos homens e não há ordem, talvez, em seu andamento". 

*

"A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda distância."


sexta-feira, 17 de junho de 2016


a única luz que entrava no carro vinha de um poste mais longe. Já fazia o silêncio da noite, e preenchimento não estava sentido: mal falavam, os dedos das mãos em zigue-zague de um, do outro, de um, outro. Deitou em certa ternura, ouvindo o que se havia pra ouvir: 
- seu coração bate diferente. 
Verdade que era preocupação já há algum tempo. Há pouco visitara o cardiologista. Eletrocardiograma. Tava tudo certo, batia bem certo. No papel, a agulha sentiu os riscos indo pra cima pra baixo, rabiscos de enormes formações geográficas vistas ao longe, cadeias montanhosas de picos angulares e vales abismos, tudo como devia. 
Mas batia diferente, tinha sentido também. Quando se deitava e estava tudo muito mas muito quieto, via o meio do tórax pular - normal?, nunca tinha visto pele pulsando junto com o que tinha dentro - e sentia bem no chão dos ouvidos a involuntariedade do músculo percutindo as paredes dos canais; quase podia sentir o sangue chegando às pontas dos dedos: mas como fazia pra voltar?, como escoava de volta, tudo que vaivolta, como voltava o sangue?, pra onde? Sempre se fazia perguntas como não soubesse as respostas, a surpresa de um novo conhecimento descoberto, e deixava embora em imaginagem as finitudes do corpo, propriedades supersticiosas das artérias veias capilares, os mapeamentos, toda essa cartografia desenhada em vermelho que escorria os segredos da existência, quais?, faria susto dar-se conta, não-dizeres hemoglobineos que vão traçando caminhos, coisa que é dada: reflete (na parede há um buraco branco, o espelho. É uma armadilha. Sei que vou cair nela. Aí está. A coisa cinzenta acaba de aparecer no espelho. Aproximo-me e olho pra ela: já não posso ir-me) reflete nos caminhos de fora também, ah sim, todo esse funcionamento manado de certa harmonia desses rios vermelhos ao Rio Vermelho, os equilíbrios das regências de toda energia entre toda coisa. Certo que era mais divertido que revisar esmiuçadamente a própria cardiovascularidade. 
Não se lembrava de uma noite qualquer, já de há muito: fazia qualquer coisa banal quando ouviu algo trincando. Pensou que alguma gata tinha derrubado um copo na cozinha. Não, chão limpo. Foi pra janela prum último cigarro naquela noite, quanto céu, sem perceber que fazia estrela por demais e que  cada conta de brilho era estilhaço. 


sexta-feira, 10 de junho de 2016


começa-se preparo. As varas os anzóis as iscas a paciência. Calcular horário, visto possível distúrbio que podem causar os insetos. As roupas geralmente específicas pro conforto na espera. 
Senta no aguardo, insuspeito. Iscas vivas?, minhocuçus ainda cheios de movimento pegajoso. 
Lança. 
Guarda os incômodos circulares concêntricos que fez a interrupção da superfície lisa d'Água enfraquecerem. 
Primeiro movimento é sumir peixe. Oferta de corpo assim levanta espanto. 
Espera. 
Afinal não é um corpo tão estranho assim. 
Vêm mordiscadas. Não é hora ainda, está tateando com a boca. Uns pássaros espertos observam de árvore próxima. 
Mordiscam mais forte, alguma confiança. Não é hora ainda, necessário maior ângulo do maxilar. Voam porque sabem. 
A boca fria cheia de água gelada dispõe então, finalmente toda. Brusco, fisga anzol: instrumento ardiloso, perverso. Entra que mal se vê, dada forma: ponta em fração de milímetro que, afiada, se expande. Parasse o tempo. Daí a linha firme invisível de náilon puxa conduzindo lenta tenaz dissimulada inflexível confiante sádica prum fora da água em que há tanto ar porém não. 
Os olhos vão secando; o desespero das guelras, inutilizadas membranas, correndo abrir fechar da busca. Escamas sujando, barro onde antes tão reluz: fazer apoio no chão às mãos de tirar anzol: estalo surdo que faz o arrancar do ferro rompendo as texturas da carne: fura quase despercebido, só sai no rasgo: pedaços ainda no estômago, voltando gosto na boca.


quinta-feira, 9 de junho de 2016


Acordei longe de casa, pensei. 
Mal pudera frase tão errada com sentido algum, seja o caso pensar: acordar pressupõe dormir, dormir há anos não me é um forte, e meus fortes das guerras antigas estão há tempos pro léu -, ficou uma boca de fogo ou outra meique dormente, preparo pela metade, bombarda em pólvoras jogadas àgua aguardando no tempo utilidade - grandes feitos então inúteis em minhas praias, a altas alturas porque mar aqui vez em quando voa grandes recuos predizendo volumes em ondas de quando tremece dentro, feito noite que mal passa nos anseios do dia que mal vê as dúvidas da noite que só acaba porque vem o sol que só nasce pra se pôr 
daí deram-se contas os fortes largados que sol despontou longe de casa, quão longe é possível no espaço-tempo, longe horas de ponteiros de relógios outros, longe wormholes que começam e terminam num mesmo lugar percorrendo o sideral conhecido em frações indivisíveis de segundos, saltos quânticos calculando todas as possibilidades e caminhos em todas dimensões direções, longe algumas estações de metrô, arniqueiras 
de casa que não esteve e não há, porque casa é onde se rodeia dos pequenos fragmentos dessa vida roseando memória se dizendo eu, safespace de conforto e construção, 
Tornar fortes abandonados em realeza de castelania - a beleza das reformas -, tornar ostentação dos palácios em abandono - teias aracnídeas finas resistentes pelos cantos e quadros 
a vizinhanca, as histórias de quem me coloca na xícara um café, as árvores que vou reconhecendo uma a uma, a hora em que o sol faz sombra de tal forma ali naquele bloco da frente. 


sábado, 28 de maio de 2016


, as histórias dos homens são as mesmas, só habitam novos corpos - forma física a se fazerem contadas - assim como a dor, que percorre as fibras junções os músculos em contração a exaurir os receptáculos d'alma, tamanha intumescência acusada da vinda desses diabretes de difícil exorcizamento, que vão dando dentro umas cambalhotas, piruetas circenses em equilíbrios a desafiar as físicas conhecidas, complicadas danças que a razão tenta organizar,  pas de deux de metódicas próprias que fazem sentido algum ao balé diastólico e sistólico que insiste em acontecer aqui dentro: urgências, e então se acabam com este aqui e correm a um próximo, volando tormenta, tornando em trama de sensível empatia tais (quase sempre rs) silenciosos eventos cataclismáticos que unem fio por fio, invisíveis, cada um que toca nesse grande mundo desafeto, mas tão habitado de surpresas e belezas que nos valem nesse plano (que vez em quando são usadas em malabaris na diversãozinha dessas coisinhas de risadinhas e asinhas dando volta na cabeça, fazendo turvar vista, mas sim: tão por aí as belezas sim) (tão, né?) (prfvr)


segunda-feira, 16 de maio de 2016


hoje, no décimo sexto de maio, veio céu se enchendo dum pretume já há algum tempo sem vista, porque a seca tava correndo antecipada, e cai aqui na asa mais do sul (desconferência geográfica: Brasília tem norte que não o é, nem sul é sul, e a guia se faz somente rumada, modo que a cabeça vem com uns desbaratinos de causas: desorientações pelas rosas dos ventos), cai aqui nesta Asa que aponta pras minhas origens e ventre um chuvisqueiro plumado, pra causar intermitência inda que pouca nas previsões dos meses porvirem em ar que seca garganta e torna o acordar um fazer incômodo, intermitência sem nutrição porém suficiente pra memorar a terra de seus perfumes quando-mais-a-água e roubar do passo-a-passo a poeira dos pés, que já vão cansando do percorrer dos caminhos desconhecidos ou conhecidos mesmo. Fadiga.  


sábado, 7 de maio de 2016


guardo Bruckner (mais especificamente seus primeiros movimentos da sétima ou nona sinfonia, a depender do dia - qual seu fim?, busca de luz mi maior, crepuscular desistência em aceite ré menor?) para raros momentos, quando há o tempo a correr silente os caminhos da casa, passando pelas coisas e bichos, quando os vincos entre os tacos de madeira antiga destes apartamentos se abrem em grandes cânions, madeira em carne, altíssimas paredes pulsantes, eu no meio bem me sabendo rodeado das próprias insuportabilidades, o cozimento lento das linhas melódicas infindas tratadas das diversas formas possíveis expandidas acrescentadas rasgadas adocicadas aquietadas brutas beleza perversão moldante plácidas deuses resquícios amabilidades quietamente furiosas ilimitando as fronteiras, as minhas a música, minuciosa vistoria e revisão, as perspectivas várias, o clímax que se desfaz enquanto ainda não se sabe ápice, os vinte e cinco minutos para que se conclua um princípio que não se esqueceu, porém tão diferente pois metamórfico, as codas cobrindo enormemente o chão. Guardo Bruckner pra quando preciso ouvir outrem percorrendo aqueles que meus caminhos diários - o lento e grave movimento do mais belo dos planetas orbitando retrógrado em mapa os pesos imensuráveis, astrologias cármicas, senhor dos tempos regendo organizações celulares involuntárias inconscientes cíclicas, materialização de princípios, eterno retorno erro, os anéis vistos de longe (porém não mais que poeira e resquícios) apontando firmemente os lugares-lacunas do preenchimento radiando a descoberta: preenchimento em si, tolham-se projeções - guardo Bruckner pra quando preciso ouvir outrem percorrendo aqueles que meus caminhos, a fim de tornar acompanhada esta lida diária tão só. 


sexta-feira, 6 de maio de 2016


as noites se estendem grandes distâncias, povoadas das criaturas de mitologias individualissimas - resquícios fantasmáticos - poder-se-ia os chamar sonhos inquisidores; pesadelos quiçá, desavisados que somos das qualidades estéticas errantes desses misteriosos fundos do dentro da cabeça - caminhantes de finas estradelas sinuosas de desconhecidos redores. Fosse o olhar menos assombrado pela luz-clareza da certeza do dia, cercassem os olhos menos as vendetas pelo arremate em queda, fôssemos mais crianças onde vicejam inda purezas naquilo que é belo, monstros tais transfigurar-se-iam musas tal o desconcerto de seus contornos difusos - como se se expandindo, pulverizando perfume dulcíssimo, molécula d'existência desgarrando se lançando ao nada que entorna, preenchimento esquivo - noturnas vidas temporárias, antes à luz dos dias inexistentes, vagantes em leve pisar: ouve-se somente o ranger das gaiolinhas que levam nas mãos (os vultos em pernas, qual sombra que faz sol quando toca a linha do horizonte, longuíssimas andando estreitas, as alças das gaiolinhas levadas nos dedos finos compridos de texturas frias e movimentos de delicada estranheza),  gaiolinhas onde murmuram dentro as pequenezas belas desses grandes apegos da vida, criaturinhas sutis porém de constituição firme, cantando as ladainhas em prece obsessiva que estruturam os desejos as pulsões as plenitudes desconhecidas.


sexta-feira, 22 de abril de 2016


Há algo de revelador naquela mirada da janela: não há folha que encontre o chão, permitindo ao ar realização física da paradeza, copa das árvores em pleno grito de imobilidade. Dentro, apito ensurdecedor na gaveta, que não se sabe uso ou não se sabe usar ou não se quer ouvir ou falta uma peça: jograis em vida. O aguardo do movimento que comunica à folha que seca de sol o momento da desprenda: queda livre, balançada de leveza, errante retorno: renovação. 

Num lado, somente aquilo que mais nos é íntimo e caro pode salvar. Doutro, é o desconhecido que  guarda a possibilidade da redenção. 


sexta-feira, 15 de abril de 2016


- tá bem?
To sim. Só besteirinha de menino bobo.
- essa palavra viaja bastante.


quinta-feira, 14 de abril de 2016


quando as histórias tiverem se tornado as dobras do cansaço do rosto, quando as noites da juventude forem passado que já não se diz, quando as paixões forem memórias guardadas que não se contam aos filhos e netos, e as manhãs improvisadas em água corrente (ali no fim da asa norte) forem lembranças acessadas com raridade, o ralear dos cabelos clinicando a desistência corporal, quando a manhã for preguiçosa acordada em café e horas escorridas pois o compromisso próximo é o almoço e a caminhada que o segue às sombras das sibipirunas - por vezes tapetes amarelos em tramas de natureza fiandeira -, quando o olhar já mais cansado observar os arredores e seus viventes fazendo predições porque os olhos já viram muito e conhecem os homens e seus tipos e sabem dizer o que ainda está por vir, quando os afazeres forem aventuras voluntariadas, quando a noção do tempo observar em equidade o novo bulbo que se arranja na mesa - e não se esperar a passagem dos dias mas a folha que nasce e cresce, os meses em broto -, quando a calma já estiver aceitada porque há pouco em nossas mãos, quando estes transtornos juvenis em preocupação se façam lembrados em ver a ansiedade das gerações ainda por vir, quando assentar que as histórias dos homens se repetem e só habitam novos corpos - formas físicas a se fazerem contadas-, quando os caminhos abertos com as pás e rastelos se chamarem Alameda dos Flamboyants, e os eixos (norte, sul?) forem estranhos feitos no concreto há muito sem visita, quando o amor estiver em constante companhia passando as folhas e brotos, e a saudade for palavra desconhecida, quando as línguas faladas forem somente uma e o silêncio não for incômodo - comunicação em sinais de eletricidade já há tanto se habituados, a leitura dos olhos, do corpo, dos gestos, do amor -, 
ladear aos meus 26 anos (meu deus, ainda 26), a ânsia senil.



segunda-feira, 4 de abril de 2016


o dia em que chegou na cidade (dessas hoje poucas, cujas casas guardadas pelo escuro da noite - pois a noite faz escura, protegida dos fogueiros em excesso e da eletricidade - inda tinham as portas sem passar trancas, lugar onde se deixam as cadeiras de palha em treliça esquecidas [nos mais mínimos alpendres, o cimento queimado ladeado das muretas mínimas {que possibilitam os aparentemente inertes afazeres, sagazes, das embeatadas que acompanham com os olhos o passo largo ou non troppo dos transeuntes - a depender da quentura do sol - e suas assuntadas, vindas das distâncias ou das esquinas mesmo} - há de se os ter, os alpendres] treliças que guardavam os segredos de Cotinha, filha de Cota (fazedora de bolinho de arroz de comer de boca boa que só vendo. Fila começa sempre antes das novenas) mais seu Zé da Arimateia, para quem caíam (feitas as tribeiras, já há muito sem cuidado, de casarões doutras épocas; sólidas fachadas em branco de cal escondendo as espessuras das paredes de terracota, o grande alívio dos interiores em dias mais acalorados - pois o sol ali podia fazer de doer, bandas onde não se pode habitar desprotegido ou caminhar pelas pedras da rua sem sombra, onde se ouve o sol ansiando abrir passagem no estalo das janelas, a madeira em dilatação) caíam os gracejos sobre Cotinha daquele rapaz já meio marmanjo, dado às serestas (um violão de sete cordas que era uma beleza, voz de boemia barítona que fazia tremores internos fragilizarem as mais castas das bem-criadas moças - que sabiam residir em tais proezas do feitio daquele rapaz certa malícia, certa marotagem que bem se vê proposital [saber porém de seus porquês, seus olhares em volátil ardência juvenil, a intangibilidade desse moço das prosas e cantorias, era parte da atraente situação - sabia-se por certo que aquele rapaz não fazia bem desposar, e quedavam-no como sonho fugidio de suas metódicas quotidianas]), filha do Zé da Arimateia, ali da venda onde os meninos mais faceiros compravam os traques pra logo correr a empestear a carcaça daquele sapo no meio da rua, violando as integridades do corpo do bicho - com dificuldade porque era morte ainda recente e não tinha secado ao sol, mas a tarde era longa e vazia e faziam da teima o vencimento da desfiguração, rompendo os feitos e criações da natureza, foi girino ali no largo da carioquinha, a brevidade da existência vivida por entre as beiras de rio pra acabar ali nas traquinagens às toas dos moleques - (desacompanhadas dos olhos sérios essas traquinagens, sadismos de origens intraçáveis - julgados talvez inofensivos às vistas mais desatentas -, quiçá não sabiam os aguardos do futuro), meninos faceiros atrapalhados vez ou outra pela carroça de cavalo que passava rumando a saída da Ponte Velha (pra assim poder passar frente a Matriz - a outra torre dos sinos nunca terminada, superstição [dizia-se que a primeira vez construída a atingiu um raio bem na sexta-feira da Paixão, enquanto entravam as longas filas em procissão na companhia do Senhor Morto, de modo que a gente de dentro mal soube o que houve, e o horror atingiu os mais distantes nas filas de velas - um grande pontilhado de luz resultando ao fundo em fogo de improporções, até as matracas calaram; da segunda, tremores de terra fizeram pesar o sino trazido das lonjuras onde se falavam já outras línguas, cavando passagem por entre os andares em escadaria, calçando-se em suas toneladas de bronze à direita da entrada principal da nave, onde então permanece lembrança dos desastres {que aconteceram em tempos imemoriais e são contadas das avós para os netos que contam para as netas, e dizem que as procissões em velas nunca tiveram mais os mesmos tamanhos - antes de uma beleza que trazia comunhão pr'essas gentes no peso do silêncio em retidão e serpenteava a cidade com a luz errante da queima dos barbantes em cera, e diziam ainda que as marchas fúnebres das bandas que acompanham o senhor morto - de datas indistintas e madeira pintada à mão, tornava em interna cadência a devoção pois era de uma proeza de capo-lavoro sua humanidade - as marchas da banda tinham tristeza verossímel pois eram tocadas nos mesmos trombones e souzaphones e clarins e bumbos que viram os grandes desastres da Matriz}] -, a carroça rumando a saída, a mão ungindo Pai Filho Espírito, os caminhos então protegidos em fé, que o chão da estrada maltrata os animais e as rodas e as ancas, e o destino, longe dias, é um somente vislumbre no final de grande desventura), Zé ali da venda onde maridos dividiam dois dedos de prosa e de pinga, zombeteando os afazeres domésticos e dizendo impropriedades das belezas mais jovens, os meninos faceiros compram traques, as meninas compram pequenas imitações em barro das panelas grandes do grande cômodo da casa onde ficavam as mães e tias e dindas assistidas pela criada (das pedras grandes que muretam o quintal tiram-se o limo, as pequenas florzinhas secas mais terra, um tiquim de água, e a tarde toda se ia escorrida na feitura destas comidinhas em panelinhas de barro das menininhas, - banquetes que não pereceriam às moscas e ao sereno. Fosse antes assim da vida feita, mal sabiam os aguardos do futuro - os pés descalços que não conhecem a donzelagem passam pelos amontoados de mamona, mesmo com aquelas secas caídas no chão [graças ao bom deus os moleques hoje estão demais distraídos com outras coisas quaisquer e não vieram aporrinhar a tacar mamonas e fazer guerra, brincadeira chateante que reserva os amores possíveis do futuro] fazendo doer o piso, mas há de se pegar aquela última florzinha ali no canto para enfeitar o último prato destes sumos de quintal em banquete) o dia em que chegou na cidade pelos velhos caminhos inutilizados que passam por detrás da Santa Barbara fazia sol com chuva (diz-se do casamento da raposa ou da viúva, neste terra em que não há raposas porém lobos altos esguios avermelhados, cuja curiosidade e mansidão entregam em bandeja a pelagem de raras cores, quistas nos detalhes dos alfaiates e outras prendagens - em lugares longes, porque esse povo daqui dizia trazerem resquícios do entre-mundos esses bichos, de natureza calma mas de olhos de gente e patas por demais compridas, tranquilos vermelhos agouros vindouros das matas ralas de árvores baixas que, quando adentram as casas, sentam aquietados nos fundos dos quintais compridos e guardam o dentro da casa com paciente calma: e nada faziam, tornando a presença para os habitantes da casa fonte angustiante, e se acontecia algo ruim logo criam ser porque o bicho tava lá. Era tal a agonia da vista da criatura que não se percebia: junto dela vinham borboletas de variados tamanhos que pendulavam por várias casas seguidas e logo vinha a notícia de vida e era tal a euforia que ninguém se lembrava do bicho habitante dos últimos dias - pois uma coisa era acertada: faziam guarda aos pequenos do entre-mundos e os traziam pra outra chance no amor em vida, as borboletas em comemoração flanando asas coloridas, flor em alastro a embelezar os dias vindouros; casamento de raposa ou viúva, nesta terra em que as viúvas não casam um'outra vez e fecham as janelas [pois o luto não é um processo de superação e sim autoafirmação em clausura e úmida escuridão dos quartos, solidão e auto-comiseração impiedosa a roer - quão lento as heras cobrem os camafeus ganhados presentes em noivado jogados aos jardins - as cordas vocais deixadas de lado do uso, porque a retidão tem de se fazer audível] e fecham as janelas das casas e respiram nos quartos até que haja sufocante umidade e se desfaçam indolores imperceptíveis em desmanchamento no breu trancado das portas - porque nas portas do luto sim, se passa a chave, para que fiquem guardadas da noite e do dia e das pessoas e das vozes e das músicas dos pássaros {feito difícil visto a algazarra todo fim de tarde das ararinhas dos coqueiros do cemitério, altíssimos, que unem em raiz o podre daquele chão do qual poucos se salvaram ao alvíssimo céu, como tentativa em caule de esticar os dedos e folhas ao mais alto-próximo do criador, mal sabiam estes aguardos do futuro} e assim era e assim todos sabiam, luto o diziam naquele lugar amor - "Sinha'Badia se foi ontem de amor" - e ficavam pois as casas fechadas, porque não havia velo para o amor e sim estes mausoléus que se tornavam as residências, e aos poucos a umidade carregada de matéria orgânica em semente, escapada pelas mínimas frestas das janelas e das portas desses quartos, enchia os corredores da casa e logo as salas e as falhas das janelas e cobriam aos poucos as coisas de fino visco, que esperava saúde em sol e chuva e ganhava forma de folhas e flores e perfumes - e com a ida do tempo, maior volume tomavam estas matas que permaneciam intactas até que se perdessem a memória de seus donos e seus nomes e suas histórias, e ficavam assim, permanecidas, por maestosa contemplação em ruínas no meio das ruas, grandes resquícios das paredes em cal e longuíssimos caules que verberam nos amores juvenis que buscavam inspirações; ali residia.) 
Chegou por detrás da igrejinha, que ainda restava sobre suas fundações cravadas na rocha do morro; o sol brandeado pelas finas gotas da chuva que, insistentes, tentavam molhar os caminhos de pedra há muito sem uso; grandes corredores de coqueiros e palmeiras imensuráveis de formas jamais vistas, trepadeiras de gavinhas sedentas cobrindo enormes espaços, pesadas em flor de cacho, orquídeas sem nomes memórias ou histórias de cores e ciência desconhecidas, perfumes de realidade dubitável e grandíssima leveza, neste grande e aparente abandono de meu deus do céu que foi só amor demais.


sábado, 2 de abril de 2016


das certezas, se os anos as me deram: uma delas é não me ter sido permitido o dom do passa-tempo fácil e indolor - vistas as sequências de casualidades e os efeitos das causalidades (e, se me permito breves elocubrações egóicas, rápido me concluo em conspirações sistêmicas de astros - ai, retrógrado Saturno em meu mapa de céu - ou ainda cármicos determinismos) - pois a aparente placidez no semblante, o riso fácil e a clareza dos olhos me velam ao mundo feroz selvageria interior (não felina veloz afiada - espessa selvageria qual magma em lento movimento interno de altíssimas pressões, calor e destrutiva incandescência), - penso enquanto, no espelho - ilusão ótica - retiro, um a um, estes pêlos grossos que me unem as sobrancelhas, estas farpas da minha humanidade orgânica pinçadas voluntariosamente em tentativa de meticulosa ação das mãos - que sabendo-se da sequência dos anos, supõe-se , não miram tão firmes, e, errantes, porém eficientes, ajudam adornar o de fora para tentar, quem sabe, o de dentro permanecer intacto e invisível, ah: estes ocultismos aos quais nos forçam as circunstâncias em prol da preservação destes cristais e diamantes, gestados dos nossos carbonos internos para que, quando só, seja possível se permitir abrir a janela (persianas coloniais de madeira) e residir, neste momento átimo, na refração de luz destas infusíveis tetraédricas formas de rearranjo molecular - já esta uma certeza das constantes físicas, isentas de autoengano: o reiterado maravilhamento das formas prismáticas dispersando branca luz em cor.


quinta-feira, 31 de março de 2016


- seria isso!? Duraria o tempo deste corte se fechar? A macieira em fruto nascida maçã das co-incidências atômicas, e o sádico ato de te tirar as sementes e torná-la pois infértil castrada imperpetuável antes de mastigada, maçã que em ardilosa manobra se escorrega por entre os dedos, voluptuosamente inanimada, a faca-serra em movimento de encontro à mão. Seria isso?!, o tempo deste corte se fechar?, o tempo desta pele aberta ruborizada em trauma da lâmina, tal perda da integridade cutânea, se permitir as biológicas reconstituições - tecidos vasos carne poros - cedendo à inevitável força destes processos naturais evolucionais da separação deste mundo interior daquele mundo exterior (sabedorias orgânicas imemoráveis sconosciute), essa alvenaria de corpo que isola os universos internos do universo externo único - vácuo, a inexistência de vida que se sabe, distorções temporais [conceitos estranhos às rochas que orbitam, elípticas, os astros grandes em volume e luz], distorções espaciais de causa: massa peso gravidade, [ai, essa gravidade, essa força umbilical da atração dos corpos] - essa tentativa de paupável esforço que se sente percorrendo nervos pêlos têmpora articulações pélvis até chegar à ferida exposta pelo aço inoxidável moldado para o rompimento celular, esta que criou permeabilidade acesso fragilidade vulnerabilidade, conscientemente indesejada, e a fazer fechar no silêncio colagenoso que escorre então pelos edemas e processos inflamatórios - a expulsão dos agentes agressores estranhos ao corpo, estes estranhos impulsos do corpo agressor expulso a pus e gozo retido, negação e rejeição. Seria isso? 
- talvez, - reticente, o gaveteiro das facas e outros utensílios, este que está aqui, que porém nos guarda para além de uma gaveta ou armário, bem à minha frente, que se brinca sério em pueril autoconvencimento. 

segunda-feira, 21 de março de 2016



ruína, coisa tal donde surgem, 
meados os assombrados resquícios pedra porosa dor mineral barro fim, 
inesperadas simbioses 
esporófitas sustos brotamentos 
arquegônios raízes 
verdes em vida.



 

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