sexta-feira, 17 de junho de 2016


a única luz que entrava no carro vinha de um poste mais longe. Já fazia o silêncio da noite, e preenchimento não estava sentido: mal falavam, os dedos das mãos em zigue-zague de um, do outro, de um, outro. Deitou em certa ternura, ouvindo o que se havia pra ouvir: 
- seu coração bate diferente. 
Verdade que era preocupação já há algum tempo. Há pouco visitara o cardiologista. Eletrocardiograma. Tava tudo certo, batia bem certo. No papel, a agulha sentiu os riscos indo pra cima pra baixo, rabiscos de enormes formações geográficas vistas ao longe, cadeias montanhosas de picos angulares e vales abismos, tudo como devia. 
Mas batia diferente, tinha sentido também. Quando se deitava e estava tudo muito mas muito quieto, via o meio do tórax pular - normal?, nunca tinha visto pele pulsando junto com o que tinha dentro - e sentia bem no chão dos ouvidos a involuntariedade do músculo percutindo as paredes dos canais; quase podia sentir o sangue chegando às pontas dos dedos: mas como fazia pra voltar?, como escoava de volta, tudo que vaivolta, como voltava o sangue?, pra onde? Sempre se fazia perguntas como não soubesse as respostas, a surpresa de um novo conhecimento descoberto, e deixava embora em imaginagem as finitudes do corpo, propriedades supersticiosas das artérias veias capilares, os mapeamentos, toda essa cartografia desenhada em vermelho que escorria os segredos da existência, quais?, faria susto dar-se conta, não-dizeres hemoglobineos que vão traçando caminhos, coisa que é dada: reflete (na parede há um buraco branco, o espelho. É uma armadilha. Sei que vou cair nela. Aí está. A coisa cinzenta acaba de aparecer no espelho. Aproximo-me e olho pra ela: já não posso ir-me) reflete nos caminhos de fora também, ah sim, todo esse funcionamento manado de certa harmonia desses rios vermelhos ao Rio Vermelho, os equilíbrios das regências de toda energia entre toda coisa. Certo que era mais divertido que revisar esmiuçadamente a própria cardiovascularidade. 
Não se lembrava de uma noite qualquer, já de há muito: fazia qualquer coisa banal quando ouviu algo trincando. Pensou que alguma gata tinha derrubado um copo na cozinha. Não, chão limpo. Foi pra janela prum último cigarro naquela noite, quanto céu, sem perceber que fazia estrela por demais e que  cada conta de brilho era estilhaço. 


1 comentários:

Victor disse...

"tínhamos tão pouco em comum que ele me confessou ser eu uma das pessoas que mais o inquietavam no mundo. Meu anseio de saúde me havia levado a estudar o corpo humano. Ele, ao contrário, conseguira apagar da memória qualquer noção sobre o funcionamento da prodigiosa máquina. Para ele o coração não pulsava e não havia necessidade alguma de estarmos a recordar a função das válvulas e das veias a fim de explicar o funcionamento do organismo. Nada de movimentos, porquanto a experiência ensinava que tudo quanto se move acaba por parar."
I. Svevo, Zeno.

 

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